quarta-feira, 20 de junho de 2007

Fábula


"A BAILARINA"



A pequena cidade interior agita-se com o anúncio: Rafaela Burdisso, a célebre bailarina surda actuará em três semanas, na sala de actos dos Paços do Concelho.

"De Tchaikovsky a Charpentier", informa o fundo de cartaz, sem que ninguém se interesse por esse tipo de futilidade.

Os quatro dias que se seguem acantonam o pequeno quotidiano local em duas filas, intermináveis, onde a verborreia nasce e o bom senso se dílui.

A meio do quarto dia o anúncio soa a sentença, aos ouvidos daqueles que serpenteiam pela estrada fora, em fila ruidosa mas ordenada: Lotação Esgotada!

Divide-se a cidade em duas, entrincheiram-se vizinhos, afastam-se adolescentes e depressa se inicia a retaliação dos "sem bilhete": "se é surda como dança? Embusteira"; "Também não gosto de dança, menos ainda dessa música para dormir"; "Só ia porque a minha mulher insistiu", "também aquela mal casada só vai para conseguir estar fora de casa durante umas horas"; " era só o que me faltava, tirar o dinheiro da alimentação dos meus filhos só para aparecer nas páginas do Correio do Povo".

Há até registo de um marido que preferiu acompanhar uma colega de serviço, porque não conseguiu bilhete senão pela empresa - pelo menos um divórcio à custa do maior evento cultural de que há memória em Aisircopi.



*



Rafaela sai do quarto, são 3 da manhã de um dia que não sabe qual. São 4 dias consecutivos que não lhe oferecem noites de sono. O sono retardado tatua-se na sua face, que à noite inunda de base.



Na varanda do último andar de um edifício interminável do centro de Buenos Aires a escuridão da noite completa a sua ausência de mundo. Não precisa, não quer não vai: Olhar para baixo, ofender-se na luz, sentir que ainda ninguém lhe fala.E mais: ter vontade de cair, de se abandonar a tudo, de dançar no ar, ao som do Prelúdio do "Amor vince Ogni Cosa". Dançar uma última vez, dançar vertiginosamente. Até ao chão.



Não dorme. Agora fuma. Sempre que se sente adormecer tem a sensação que ouve murmurar, sussurrar. Sente-se voltar a si o mundo dos vivos e das cores. E Acorda, estremece, para se aperceber da fatal ilusão. Mantém-se apenas a ouvir a memória, de todas as musicas que dança, de todas as vozes que ama.



Na primeira das noites brancas passou duas horas num jardim, repetindo, com a sua voz de barítono: "Meu amor, ouvi a tua voz, onde estás?"; "Meu amor, acordei com a tua voz, onde estás?"; "Meu amor, lembro-me da tua voz, porque te foste?". Em duas horas não ouviu a sua prece, nem a resposta. Já não chora.



*



"..porque a verdade é essa, tudo serve para não vires passar tempo comigo.Se é trabalho é trabalho inádiável, agora achas imperdível ver essa senhora dançar, mas sabes, estou farta, não consigo mais, amar-te de tão longe, esperar que tudo se conjugue para que o amor possa existir, quando se costuma viver a pensar que é exactamente ao contrário que o amor funciona. Amo-te sabes, e mantenho-me apaixonada, mas já não consigo mais. E sei que me vais julgar, sentir que não te concedo a liberdade toda, sentir que vivo uma espécie de amor obsessivo e por isso menos válido, que não entendo que me amas muito, e que tudo o que queres é ser feliz comigo, que sou a tua pessoa, única e eternamente. Sabes: bem sei que me amas assim, não duvido minimamente. Mas estou infeliz. Espero-te e espero-te e espero-te e espero-te. Queria que estivesses sempre feliz, apesar de sozinho, quero que procures tudo nesse sentido. Mas acho que quero também que me procures a mim. Lamento deixar-te estas palavras na memória do teu telefone, mas continuas a não atender. Não dá mais Pedro. Não me julgues pequena, ou vil, ou não me julgues ao sabor das grandes correntes filosóficas que passas o tempo a evocar. Queria beijar-te e não posso. Queria mimos, sim. Mas amo-te em todas as dimensões que ambos desconhecemos."



O telefone não falou mais.Pedro ainda segura o Jornal, aberto nas páginas de mau gosto que traçam a biografia de Rafaela Burdisso em traços espessos e desinteressantes: a explosão no estúdio, a surdez subsequente, a perda do jovem marido, o suicidio do irmão, a pobreza dos pais. Nada disto lhe ressoa no espírito. Nada como as palavras de Rita. Sinceras, magoadas, firmes.



E verdadeiras.



Do bolso retira o bilhete para o espectáculo: fila A, lugar 3. Uma noite dormida na rua com o objectivo de ver de perto aquela que o acompanha noite sim, noite não, quando sai da Câmara Municipal e chega ao apartamento perdido na cidade desconhecida.






"Este será o único dia em que verei uma cara conhecida", pensa. "Será que um amor tão grande não o permite? Ela sabe perfeitamente a importância que este espectáculo tem para mim".


"Saberei eu perfeitamente a importância que a Rita tem para mim?"


*




Uma semana exacta antes do espectáculo que alterou o quotidiano da cidade de Aisircopi, tem lugar, no local do evento, um debate/sessão de esclarecimento organizado pelo vereador da cultura local, que preside à mesa, rodeando-se de um especialista em música e dança contemporânea, um neurofisiologista, o gestor de imagem da artista e o dono da única loja de discos ainda aberta na cidade.


Por forma a tentar amenizar o dia a dia dos cidadão locais foi dada preferência no acesso ao debate aos "sem bilhete", que inundaram a metade anterior do anfiteatro.

A sessão foi animada, levemente tensa, e muitos vizinhos saíram da mesma sem se falar.
Houve projecção de imagens seleccionadas da corrente digressão da artista, venda de merchandising, pausa para café e bolinhos e muita interacção entre o público e os prelectores, a partir da qual resultou o esclarecimento de algumas questões, de entre as quais se sublinha:



· Que Daniela Burdisso é, de facto, surda desde há 4 anos
· Que, tal como esperado mantém sensibilidade à vibração do som
· Que dança profissionalmente há cerca de 15 anos, sendo que a própria optou por voltar a dançar por sentir-se honesta em relação a esta manifestação de arte, na medida em que sente toda a música
· Que a oportunidade de vir a um local tão pequeno e pouco usual no circuito de artistas desta dimensão surgiu a partir da carta de um fã local, que conhecendo as datas da digressão de Daniela, percebeu que haveria tempo e seria geograficamente prático o espectáculo nessa data, neste local. O fã teria dito que se encontrava longe da noiva por motivos profissionais, que se sentia sozinho, e que o sorriso de Daniela enquanto dançava seria exactamente igual ao da ente amada. Daniela não terá resistido a tão grande manifestação de carinho
· Que música contemporânea não é só a que foi criada depois de 1980
· Que não haveria venda de cd's da artista uma vez que se trataria de um espectáculo de dança



*




A semana correu em apenas dois dias. Toda a cidade fervilhava em preparativos e calúnias.

Os "sem bilhete" arremessavam as ultimas e mais pesadas pedras: " Se não fosse surda ninguém lhe dava atenção", "Só gostam porque aparece na televisão"; "A melhor coisa que lhe aconteceu foi a explosão. Está cheia de dinheiro”.

Os outros defendiam-se como podiam: " Mas o vizinho não estava na fila também?"; " A minha filha diz que esta cantora é uma das maiores estrelas actuais, daí a sua inveja"; " O que o corrói, colega, é que eu, ao contrário do senhor, vou poder chegar lá, fechar os olhos e deliciar-me”



*



O dia do espectáculo começou cedo. À medida que o sol foi caindo os donos de lugar correram para casa, engalanando-se até ao último pormenor.
Os sem bilhete acantonaram-se nos paços da cidade, com flores e cartazes de toda a sorte, organizando-se uma comissão de vigia a ambas as extremidades da estrada para que fosse precocemente sinalizada a chegada das estações de televisão nacionais.

Nunca antes Aisircopi vivera um dia tão intenso. Nunca antes fora feriado naquele dia, naquela cidade.



*



Daniela subiu ao palco sob uma enorme ovação, e de imediato se soltou a música, melancólica e inundante. Todos suspenderam a respiração enquanto o corpo de Daniela sucumbiu à música, num abandono delicado e intenssissímo.

No fim da primeira dança ninguém olhava o palco de frente, apenas se acotovelavam comentando a cadeira vazia mesmo em frente à artista. Todos já tinham a sua explicação, que defendiam exaustivamente como certeza irrefutável.

Após metade do seu primeiro acto Daniela parou de dançar. Sorriu e pediu um microfone. Aproximou-se de todos e olhou-os avidamente. Falou-lhes numa voz doce, que se desabituara de utilizar. Comovida disse-lhes:

“ Meus queridos, não têm a verdadeira noção do quanto esta é uma noite especial para mim. Nas últimas semanas o meu corpo tem-me enviado sinais com os quais não tenho sabido conviver. Não os entendi. Percebo-os agora com toda a sua deliciosa materialidade: voltei a ouvir. Ainda de forma leve, mas não consigo dizer-vos como me sabe bem poder conhecer cada uma das vossas vozes. Aconteceu agora, enquanto dançava em frente a vós. Não sei que mais vos posso dizer para já. Estou feliz. Espero que gostem do espectáculo que farei com um prazer que não têm forma de dimensionar. Muito obrigado"

Uma plateia atónita demorou a reagir. Aplaudiu timidamente por não saber o que fazer.

Após a 1º encore Daniela voltou ao palco, para perceber que muitas outras cadeiras vazias faziam, agora, companhia à número 3 da Fila A.



*




Demorou a aceitar a reclusão, o esquecimento, a perceber que não era o mundo que não queria falar-lhe, mas que teria de encontrar, de novo, as vozes certas. Demorou também a afastar a ideia de dançar pela última vez num qualquer céu de Paris.



*




Demorou, mas depois, um dia, sentiu-se tão feliz.



sábado, 16 de junho de 2007

Fábula

Era uma vez uma noite pequena que não queria ser grande.
E cresceu.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Anátema

Esperar, longamente, que regresses a casa
Desfiar dias lentos tentando atenuar a espera.
Querer que voltes
Esquecer a dor.
Receber-te.

Iludir a dor, diáriamente, mesmo após o retorno.
Olhar a vida, desviando.

Querer que queiras ser tu a sair, e o faças.
Sozinho.
Porque (sabes bem) te amo.
(Quase tanto quanto tu a mim)

ao futuro